Recurso excessivo aos exames de diagnóstico pode ter consequências perversas. Há quem faça tratamentos e cirurgias desnecessários, avisam autores de estudo.
Os portugueses dão muito mais importância à realização de análises ao sangue e à urina e a outros exames de diagnóstico, como forma de prevenir o desenvolvimento de doenças, do que aos conselhos dos médicos para mudarem estilos de vida – deixar de fumar e de beber demasiado álcool, por exemplo. O problema é que esta valorização excessiva dos exames médicos pode ter efeitos laterais e consequências perversas, levando até a tratamentos e cirurgias desnecessários.
Estas são, em traços gerais, as conclusões e os alertas que resultam de um estudo desenvolvido por uma equipa do Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (Cintesis) – que quis perceber a importância que os portugueses atribuem a várias actividade médicas focadas na prevenção. O trabalho foi publicado no British Medical Journal Open.
Coordenado por Luísa Sá e Carlos Martins, médicos e investigadores deste centro sediado na Universidade do Porto, o estudo demonstra que as pessoas tendem a desvalorizar o impacto que os hábitos e estilos de vida têm sobre a sua saúde, ao mesmo tempo que atribuem grande importância à realização de exames de diagnóstico como forma de prevenção. A ideia de que “quantos mais exames melhor está muito enraizada na população portuguesa”, sintetiza Luísa Sá.
A realização de exames não recomendados e supérfulos pode, porém, causar danos e comportar riscos como o do sobrediagnóstico e obtenção de resultados falsos positivos, fenómeno que a maior parte das pessoas parece ignorar, lamentam os investigadores.
Partindo dos resultados de entrevistas telefónicas a uma amostra representativa de mil pessoas com mais de 18 anos, o estudo revela também a dimensão da falta de informação da população sobre a importância efectiva dos diferentes tipos de exame de diagnóstico.
Numa escala de 1 (“nada importante”) a 10 (“muito importante”), os entrevistados atribuíram um grau de importância máximo (9,15) à realização regular de análises de sangue e de urina, surgindo, logo a seguir, os exames ginecológicos, como o “papanicolau”, a mamografia e as ecografias ginecológicas e mamárias, com notas à volta dos 8,5. Do lado oposto apareceram os conselhos médicos sobre o consumo de álcool e tabaco, que mereceram classificações de apenas entre 5 e 6 pontos.
O que também surpreendeu os investigadores foi a importância que as mulheres entrevistadas atribuiram às ecografias mamárias e ginecológicas, que não são, por norma, exames de rotina, colocando-as ao mesmo nível das mamografias e dos “papanicolau”, e a frequência com que acreditam ser necessário fazer tais testes. “Há mulheres que querem fazer este tipo de exames logo a partir dos 30 anos, mesmo não tendo factores de risco nem história familiar de cancro, quando as mamografias, por exemplo, apenas estão recomendadas a partir dos 50 anos e de dois em dois anos”, recorda Luísa Sá.
Outro exemplo é o grau de importância atribuído ao raio X pulmonar, que merece uma classificação de 7.5, quando este exame, até pela exposição à radiação, não é recomendado em rastreios de rotina e se a pessoa não tiver um historial familiar de cancro de pulmão. “Aqui há culpas de parte a parte. As pessoas fazem exames a mais, mas quem os prescreve somos nós, médicos”, nota a investigadora.
“Cascata de ansiedade”
Face a estes resultados, Carlos Martins defende que deve haver um aconselhamento individualizado e que leve em conta a especificidade da pessoa, a sua história clínica e os factores de risco. “Não faz sentido que os médicos passem pacotes de exames indiscriminadamente”, enfatiza, lembrando que o aparecimento de falsos positivos vai gerar “uma cascata de ansiedade e de exames”.
Com a evolução dos meios de diagnóstico, com o cada vez mais frequente recurso a TAC (tomografia axial computorizada) e ressonâncias magnéticas, a probabilidade de encontrar os que os dois médicos designam como “incidentalomas” cresce de forma significativa. São “lesões sem qualquer significado clínico”, que não vão provocar doenças no futuro, mas que, depois de detectadas, obrigam a uma série de intervenções. “Olhamos para dentro do corpo humano como nunca tínhamos olhado e isso tem consequências”, afirma.
Análises retrospectivas efectuadas sobre o impacto de rastreios em milhares de pessoas a em vários países comprovam que o sobrediagnóstico tem conduzido a tratamentos desnecessários. “Se se rastrear duas mil mulheres por um período de dez anos, consegue-se evitar que uma mulher morra por cancro de mama, mas cerca de 200 mulheres vão passar pela experiência de falsos positivos e dez vão ser tratadas desnecessariamente”, sintetiza Carlos Martins. Também no caso do cancro da próstata está provado que houve “sobretramento” e que muitos homens foram submetidos a cirurgias de que não precisavam, acrescenta Luísa Sá.
Testes têm efeitos adversos, como os fármacos
Em Portugal não há guidelines (orientações gerais) para se seguir um adulto saudável, não está definido que exames complementares de diagnóstico e deve ou não fazer ou com que frequência, afirma Luísa Sá, que admite que a definição de regras neste caso (que já está a ser estudada pela Direcção-Geral da Saúde) é complexa e polémica.
Falar dos efeitos laterais e dos riscos dos exames de diagnóstico ainda é pouco habitual, mas estes existem. “As pessoas estão habituadas, com os medicamentos, a ir ver quais são as reacções adversas, mas não se transmite à população a mensagem de que os exames também podem ter efeitos adversos e que os devemos usar de forma criteriosa”, destaca Carlos Martins.
Os dois investigadores defendem mesmo que os médicos devem alertar as pessoas para esta realidade. “É preciso envolver o paciente na decisão, explicar que, se há vantagens, também há riscos”, preconiza Carlos Martins, que reconhece que, para fazer isto, os médicos “precisam de tempo”.
A equipa de investigação de Carlos Martins já tinha concluído noutro estudo, em 2013, que os portugueses acreditam que devem realizar mais exames médicos (e com maior frequência) do que o recomendado nacional e internacionalmente, sem terem consciência dos riscos que correm quando os realizam.
A quase totalidade dos entrevistados (99,2%) nesse estudo acreditava que devia efectuar análises gerais de ano a ano e mais de 87% admitia mesmo que as fazia com essa regularidade, apesar não haver recomendações nesse sentido. A iniciativa de fazer estes exames de diagnóstico tinha partido do doente num terço dos casos, mas era da responsabilidade dos profissionais de saúde em 31,1% das situações. Em 28,2% dos casos a decisão resultou de mútuo acordo.
Fonte: Publico