Aparentemente, o assunto dos vidros fumados está entregue à obra da arbitrariedade, em que, com base na mesma, o Estado decidiu ter interpretação diversa sobre uma determinada matéria. E, enquanto isso, a Polícia da República de Moçambique, com um protagonismo desnecessário, vai dando largas às suas limitações em matéria de lei.
Azarado é o cidadão que, no meio deste “diz-se que não se disse” é colhido como colateral de uma desconcertação estatal a roçar a anarquia promovida pelo próprio Estado e, para nosso desespero, alegadamente com recurso à lei, ou melhor, com recurso à imperícia na interpretação da lei.
Uma questão a todos os níveis muito simples transformou-se agora num descampado para batalha de argumentos jurídicos a provar também uma espécie de instituto da recreação legislativa em que o órgão máximo da magistratura do Ministério Público se tornou. Se calhar é o efeito da tal agenda da banalização das nossas instituições em que hoje somos confrontados com um Ministério Público que não sabe dizer se é, ou não, contravenção ostentar películas escurecedoras nos vidros das viaturas. Mas, mais do que isso, é o vidro fumado, em si, ser agenda de uma Procuradoria, por mera questão de abundância de inaptos na própria magistratura.
Mas vamos ao que interessa, que é a lei. O n.º 1 do Artigo 118 do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 1/2011, de 23 de Março, considera transformação de veículo qualquer alteração das suas características de construção ou de funcionamento. Vamos reter, deste disposto, os conceitos “características de construção ou de funcionamento”.
As características dos veículos automóveis foram fixadas pelo Artigo 27 do Decreto n.º 39.987, de 22 de Dezembro de 1954, que aprova o Regulamento do Código da Estrada, que, quanto à classificação, refere-se às seguintes características: classe, tipo, caixa, peso bruto, peso bruto por eixo (à frente e à retaguarda), peso bruto a rebocar, tara, lotação, peso do quadro sem cabina, serviço a que se destina. Quanto à identificação, alista as seguintes características: marca, modelo, número do quadro, distância entre os eixos, número de eixos, número de eixos motores, número de rodas, medida dos pneumáticos, motor (marca, modelo, sistema, número, cilindros, cilindrada, potência, número de rotações e localização), situação da direcção, dimensões da caixa, gasogénio (marca, tipo do gerador, número, localização), ano, cor, país de origem e data da primeira matrícula.
O n.o 1 do Artigo 120 determina que os veículos a motor e os seus reboques só são admitidos em circulação desde que sujeitos à matrícula em que constem as características que permitam identificá-los. O n.o 1 do Artigo 122 do mesmo Código da Estrada determina que, por cada veículo matriculado, deve ser emitido um documento destinado a certificar a respectiva matrícula.
Esse documento da matrícula entendida como inscrição do veículo, a que o decreto se refere, é o Livrete ou registo temporário, geralmente designado “Verbete”. É nesses documentos, o Livrete ou o Verbete, onde estão consignadas as características de uma viatura.
Ora, se as autoridades competentes quiserem aferir se a viatura sofreu alterações, ou não, o único meio capaz de dar essa informação é o Livrete. Só o Livrete é válido, por lei, para descrever as características de um veículo. Não existe outro meio. Portanto, cabe às autoridades fiscalizarem as características constantes no documento idóneo para o efeito. Se a tonalidade dos vidros dos veículos não consta no Livrete, então essa não é uma característica fundamental passível de criar confusão na identificação do veículo. A lei é feita para harmonizar a vida em sociedade, e não o contrário.
É princípio geral do Direito que ninguém pode ser penalizado por algo que a lei não fixa como crime ou contravenção, sob o risco de se instalar a arbitrariedade. O n.o 3 do Artigo 2 da Constituição da República determina que o Estado (moçambicano) subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade. Se não há lei que determina que a cor dos vidros é uma “característica de construção ou de funcionamento”, então não é.
Compreendemos o argumento teleológico da actuação policial, para o combate ao crime. Mas o combate ao crime também se deve fundar na lei e não deve colidir com a liberdade dos cidadãos.
Se o Estado está interessado, de facto, em criminalizar os vidros fumados, deve fazê-lo constar na lei, mandando alterar o Código da Estrada e o seu respectivo regulamento, tornando imperativa a indicação da cor dos vidros como característica fundamental “de construção ou de funcionamento” e, por essa via, fazê-la constar nos Livretes. Caso contrário, é uma acção ilegal.
Vale a pena, aqui, indicar também que o parecer da Procuradoria-Geral da República que contraria a Ordem dos Advogados e o parecer da Procuradora da Cidade não é vinculativo. Não tem carácter de lei interpretativa do Código da Estrada. É apenas uma opinião da Procuradoria. Só os tribunais ou o autor da norma podem trazer uma lei interpretativa em sede de uma interpretação judicial ou autêntica. E parece-nos desnecessário perdermos tempo com esse assunto. Qualquer estudante aplicado do 1.o ano de Direito é capaz de dizer que a Polícia e a Procuradoria-Geral da República estão equivocadas.
E não é função da Procuradoria-Geral da República servir de representante legal do equívoco. A sua função é defender o Estado. E um trabalho disponível, por exemplo, em nome do Estado, é trazer-nos os nomes dos que lixaram o país e entregar esses nomes aos tribunais, para que sejam julgados. Não andem aqui com a palhaçada dos vidros fumados.
(CanalMoz/Canal de Moçambique)