“Geny Catamo pode vir a ser o Cristiano Ronaldo de Moçambique”

Em entrevista ao Desporto ao Minuto, Luís Gonçalves passou em revista os dois mais recentes desafios na carreira como treinador: a seleção de Moçambique e a equipa sénior do Interclube. O técnico luso-moçambicano garante está pronto para o próximo desafio e não descarta um regresso a Portugal para treinar na I ou na II Liga.

Os últimos anos da carreira de treinador de Luís Gonçalves têm sido feitos sob o calor do continente africano. Após uma experiência na China, o técnico, de 52 anos, não conseguiu recusar o convite do país que o viu nascer e voltou a Moçambique em 2019.

Nascido em Maputo, Luís Gonçalves regressou às origens para assumir o comando da seleção nacional moçambicana. Foi lá que se cruzou com o então desconhecido Geny Catamo e que se tornou numa das grandes promessas dos Mambas.

Pelo meio, e quando se encaminhava a qualificação para o Campeonato Africano das Nações (CAN) surgiu a pandemia da Covid-19. Depois da paragem forçada, a retoma nos trabalhos não correu da melhor forma e Luís Gonçalves acabou despedido.

Depois de ter estado em Moçambique entre 2019 e 2021, o treinador rumou a Angola para assumir as rédeas do Interclube, de Luanda. Após uma primeira temporada positiva nos ‘polícias’, Luís Gonçalves foi novamente despedido.

Em entrevista exclusiva ao Desporto ao Minuto, o técnico, agora sem clube, fez uma análise ao que foi a sua passagem pelo continente africano, ressaltando a pouca valorização que se dá ao jogador de futebol em Angola e Moçambique. Com a porta aberta a um novo desafio, Luís Gonçalves assume ainda que é hoje um “treinador mais completo” e não descarta um regresso a Portugal para treinar na I ou II Liga.

Ser selecionador nacional não é ser treinador de uma equipa. É um cargo de responsabilidade porque estamos a representar o país

Depois da China, o Luís continua no estrangeiro e volta a Moçambique, desta feita para ser selecionador nacional. O que o levou a aceitar este convite? Queria ajudar o seu país a evoluir?

Há uma relação afetiva com Moçambique. O facto de ter lá passado como adjunto durante dois anos e de conhecer o núcleo duro dos jogadores também ajudou. Senti que o grupo tinha qualidade e capacidade para chegar mais longe. E isso veio a comprovar-se recentemente no CAN. O facto de ser selecionador nacional é uma honra. Quando ainda exercia esse cargo, e disse-o em algumas entrevistas, ser selecionador nacional não é ser treinador de uma equipa. É um cargo de responsabilidade porque estamos a representar o país.

E ficou contente com o trabalho que realizou por lá, apesar de não ter conseguido qualificar Moçambique para o CAN?

Não fiquei satisfeito com os resultados porque não conseguimos o apuramento para o CAN. Mas há que fazer um parêntesis. Não tivemos a sorte do nosso lado porque foi o tempo da Covid. Se puxarmos o filme atrás desde que assumi a seleção em agosto de 2019, os primeiros cinco jogos não os perdemos e a equipa estava a jogar muito bem. O último jogo que fizemos foi contra Cabo Verde, que era orientado por Rui Águas, e empatámos 2-2. Depois veio a Covid. O Presidente da República de Moçambique parou o campeonato, sendo que 45% dos jogadores que compunham a seleção jogavam localmente. E sem pudermos fazer estágios… Foi muito complicado. Todas as seleções passaram por isso, mas uma seleção dos Camarões tem um leque de opções muito maior comparado com o de Moçambique.

Quando fomos autorizados a retomar a atividade, os resultados não foram os melhores. Não nos qualificámos no último jogo em Maputo com Cabo Verde. Foi um jogo em que o Vozinha fez uma excelente exibição e defendeu quase tudo. Precisávamos de marcar um golo para nos qualificarmos e até o marcámos… mas na própria baliza [risos]. Fizemos o nosso melhor, mas não fomos felizes. Se olharmos para a história, Moçambique qualificou-se agora para o CAN depois de duas qualificações falhadas. Foi com um bom trabalho do Chiquinho Conde que lá chegaram, que deu continuidade ao trabalho dos seus antecessores, como eu, tinham feito. Ficou um trabalho a meio e na altura disse-o. Mas as pessoas que estão à frente das instituições é que decidem e eu tive de aceitar. Mas foi uma pena porque estávamos numa caminhada interessante. Moçambique chegou à fase de grupos de acesso ao Mundial, coisa que não alcançava há largos anos. E foi nessa altura que lancei o Geny Catamo, que tinha 18 anos na altura. Foram tempos muito interessantes.

Como foi trabalhar com o Geny Catamo na seleção?

Conheci-o quando ele fazia parte da seleção sub-17, mas ele era sub-15. Já nessa altura demonstrava qualidade acima da média em relação aos outros. Acompanhei o crescimento dele e nunca tive nenhum problema com ele. A única questão com ele era o processo defensivo. Com o Rúben Amorim evoluiu muito a defender. Não hesitei em chamá-lo logo na primeira convocatória e até tive de ajudá-lo por causa de uma questão relacionada com o visto. Ele demonstrou tudo o que esperava dele. Agora é um jogador muito mais maduro, mais evoluído, compreende melhor o jogo e defende mais. A explosão e a inteligência já tinha, assim como qualidade técnica e golo. Tanto o utilizava no meio como nos corredores laterais. Tinha dois alas, o Clésio e o Witi do Nacional, muito bons e o Geny como segundo avançado.

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Luís Gonçalves e Geny Catamo na seleção© Instagram Luís Filipe Gonçalves

O Geny é, provavelmente, um dos maiores talentos moçambicanos dos últimos anos. Pode dizer-se que será o Cristiano Ronaldo de Moçambique?

[Risos] Existe um jogador em Moçambique que é ainda mais famoso do que o Geny que é o Elias Pelembe, conhecido como Dominguês. Mal comparando dizem que é o Cristiano Ronaldo de Moçambique. Já tem 40 anos e participou neste último CAN com essa mesma idade. É um jogador fantástico. Não gosto muito de entrar muito nessas comparações. Neste momento, o Dominguês ainda é a referência máxima do futebol de Moçambique, mas o Geny caminha para lá. Podemos dizer isso [de que pode ser o Cristiano Ronaldo de Moçambique] nessa perspetiva de que é um jogador que ainda pode crescer muito e atingir um nível muito elevado. Sabemos que, estando no Sporting e na Europa, acredito que, muito brevemente, poderá ir para uma Liga mais forte na Europa. O Dominguês não teve essa possibilidade pois fez praticamente toda a carreira na África do Sul. Estou convicto de que se ele tivesse tido a oportunidade de vir para a Europa, tinha tido uma carreira de outra dimensão. Mas podemos dizer que o Geny vai ser o Cristiano Ronaldo de Moçambique brevemente.

O Luís foi de Moçambique para nova aventura no estrangeiro, desta feita no Interclube. Como foi a experiência por lá?

Começou de uma forma inesperada porque fui substituir um colega que teve de sair por questões pessoais. Chegámos com o barco em andamento, implementei as minhas dinâmicas, ideias e metodologias com um plantel que não tinha escolhido mas que tinha talento. Tentei potenciar ao máximo os jovens porque o Interclube também é conhecido pela sua formação. As coisas na primeira época correram muito bem. Tivemos uma série de resultados muito bons e a equipa estava a jogar um futebol positivo e atrativo. Na fase final as coisas não correram muito bem. Perdemos com o Petro no nosso estádio, mas eles estão noutro nível. Terminámos o campeonato no quinto lugar com os mesmos pontos da época anterior. Esta segunda época começou com muitos problemas. Era para termos um estágio em Portugal e depois não houve nada. Existiram questões burocráticas que se sobrepuseram às técnicas. Mesmo assim fizemos o nosso trabalho, uma boa pré-época. O campeonato começou muito tarde, a Federação tinha aplicado castigos a várias equipas para descerem de divisão e houve muito tempo. Isso teve alguma influência. Começámos o campeonato e os resultados não estavam a correr dentro das expectativas da direção porque estavam com a ideia de que íamos ser campeões depois dos resultados da época anterior. As contratações que fizemos foram as possíveis. Cheguei a dizer que nem o Guardiola está contente com o plantel que tem. Tínhamos um bom grupo de jogadores, mas vários problemas. As coisas não correram satisfatoriamente a nível de resultados e a direção, na minha opinião muito cedo, resolveu trocar de treinador e eu tive de aceitar.

No cômputo geral, a passagem foi bastante positiva. Ainda hoje recebo mensagens de jogadores e pessoas que trabalham no clube a dizer que têm saudades. Mas isso vale o que vale, é passado. Foi uma experiência diferente de Moçambique. Tem algumas semelhanças. O facto do jogador de futebol não ser valorizado é igual nos dois países. Se os responsáveis começarem a olhar para o jogador de futebol de outra forma, a modalidade vai ganhar com isso. Se na Europa às vezes se valoriza mais um jogador em detrimento de outro, a minha experiência em África diz-me que é o contrário. Tem de haver um equilíbrio. O dirigente é para dirigir, o treinador para treinar e o jogador para jogar, tudo no seu lugar. Acredito que se olharem com outros olhos para o jogador angolano, há vários atletas com potencial.

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Luís Gonçalves esteve no Interclube entre o final de 2022 e o final de 2023 © Instagram Luís Filipe Gonçalves

O trabalho que o selecionador Pedro Gonçalves tem vindo a fazer nas camadas mais jovens é também uma forma de influenciar positivamente essa mudança de que falava?

Aí é a intervenção do treinador. O Pedro está em Angola há muitos anos. Começou na formação do 1.º de Agosto, foi para a seleção sub-17 e depois levou-os ao Mundial. Toda a gente conhece o percurso dele. É um grande profissional, trabalhámos juntos no Sporting. Hoje em dia, o que vi em Moçambique e em Angola foram jogadores profissionais, responsáveis e com vontade de evoluir. Para mim, trabalhar nestes dois países foi muito fácil. Temos jogadores que gostam de trabalhar e que acreditam no que o treinador está a dizer, fazem o trabalho todo sem problema. São jogadores muito dedicados ao treino, querem aprender e evoluir. O Pedro tem feito um trabalho extraordinário na Federação e teve o mérito de somar resultados que dão suporte ao que está a tentar implementar. Mas são trabalhos que demoram. Têm de olhar para um jogador de futebol para outra forma. Há coisas que numa equipa profissional não podem falhar sob pena de colocar todo o processo.

Pode-se dizer que tiveram um pouco mais de paciência com o Pedro Gonçalves em Angola do que com o Luís em Moçambique?

Claro, mas isso tem a ver com o presidente da Federação [risos], quem está à frente da instituição.

Sinto-me preparado para estar em qualquer circunstância a trabalhar e em qualquer nível

Passou 12 anos em Alcochete. Saiu há 13 e já treinou em quatro países diferentes. É um verdadeiro ‘Globetrotter’…

Ainda não estive no continente americano. Era uma situação interessante se aparecesse um Brasil ou outro país da América do Sul. Pode-se dizer que sou um globetrotter. Temos de estar sempre preparados para dar continuidade ao nosso trabalho e à nossa carreira. É a nossa profissão. Mas ainda há mais para descobrir.

Sente-se um treinador mais completo depois de tantas experiências no estrangeiro?

Acredito que antes de sermos bons treinadores, temos de ser boas pessoas. Estas experiências fizeram com que me tornasse numa melhor pessoa. Estou a ser juiz em causa própria, mas colocamo-nos à prova em muitas situações e ouvimos quem nos acompanham. Sou um treinador muito mais completo e também sou um homem mais experiente. Posso dizer, sem qualquer ponta de arrogância, que me sinto preparado para estar em qualquer circunstância a trabalhar e em qualquer nível.

E o que se segue agora?

Costumo dizer que do contacto ao contrato vai alguma distância. Tive algumas abordagens, conversações que não se concretizaram. Mas estamos abertos a novas possibilidades.

Sente-se capaz de regressar a Portugal e orientar uma equipa da I ou II Ligas? Gostava de ter esse desafio?

Claramente que gostava de ter essa possibilidade de treinar no meu país. Se me sinto capaz? Claro que sim. Tudo depende do projeto, daquilo que é apresentado. Quando me apresentam uma possibilidade, eu analiso e depois tomo a minha decisão. Se me convidarem? Claro que sim. I Liga ou II Liga,  com certeza.

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