Dívidas ocultas nos EUA: Manuel Chang nega todas as acusações e aponta Presidente Filipe Nyusi

Governo norte-americano apresentou a acusação contra Chang, mas o ex-ministro das Fianças rejeita todas as acusações e aponta o Presidente Filipe Nyusi como quem o mandou assinar as garantias bancárias que viabilizaram as dívidas ocultas.

O juiz do caso, Nicholas G. Garaufis, decidiu que o Governo norte-americano pode fazer buscas no telemóvel de Chang, que foi confiscado pelas autoridades sul-africanas em 2018, averbando a primeira grande derrota à defesa de Chang nos EUA.

O Governo norte-americano, através do Departamento de Justiça (DOJ), apresentou uma nova acusação contra Manuel Chang (a quem também designa “Pantero” e “Chopstick) datada de 21 de Dezembro de 2023. O documento de 24 páginas, apresentado enquanto Manuel Changa já se encontrava sob custódia nos Estados Unidos da América, é designado Acusação de Substituição (Superseding Indictment) e não inclui outros réus do caso.

O julgamento está previsto para iniciar no dia 29 de Julho de 2024, coincidindo com o período da campanha eleitoral para as eleições gerais em Moçambique. Neste momento, a acusação (DOJ) e a Defesa do Chang, que é o escritório de advogados Ford O’Brien Landy LLP, discutem questões preliminares conhecidas no direito criminal dos Estados Unidos da América como Motions in Limine.

Chang está desde Julho do ano passado preso em Nova Iorque, Estados Unidos da América (EUA), depois que foi extraditado da África do Sul. Aguarda pelo decurso do processo de selecção do Júri no Tribunal do Distrito Oriental de Nova Iorque (U.S. District Court for the Eastern District of New York), em Brooklyn, o mesmo onde foi julgado e absolvido Jean Boustani em 2019. O Juiz do caso é NICHOLAS G. GARAUFIS que exerce as funções de juiz neste tribunal desde o ano 2000, nomeado pelo Presidente Bill Clinton.

Acusação dos EUA: as dívidas ocultas resultaram de um projecto de fachada

O Governo dos EUA defende que o projecto do Sistema Integrado de Monitoria e Protecção (SIMP) do espaço marítimo moçambicano, que deu a origem às dívidas ocultas, não foi pensado pelo Governo moçambicano nem concebido para proteger o espaço marítimo de Moçambique. Para o Governo norte-americano, o SIMP é um projecto de “fachada criado pelos réus e coconspiradores para ganhar dinheiro”. A acusação sustenta a tese através de informação obtida nas correspondências entre os réus.

“Na realidade, os projectos marítimos Proindicus, EMATUM e MAM foram usados pelo arguido MANUEL CHANG e os seus co-conspiradores para desviar partes do produto do empréstimo a fim de pagar milhões em subornos e comissões a si próprios, a outros funcionários do Governo moçambicano e a banqueiros”, lê-se na acusação.

A acusação do Governo norte-americano contra Manuel Chang é de que este fez parte do esquema que defraudou investidores norteamericanos. Serviu-se do sistema financeiro norte-americano para ganhar dinheiro de subornos e comissões e ainda fez a lavagem do dinheiro do crime praticado, usando, igualmente, o sistema financeiro dos EUA.

“Em ligação com o seu esquema fraudulento, os co-conspiradores basearam-se no sistema financeiro dos Estados Unidos, procurando e assegurando investidores e potenciais investidores fisicamente presentes nos Estados Unidos, fazendo com que as vendas de investimentos nos empréstimos fossem efectuadas por vendedores fisicamente presentes nos Estados Unidos e enviando e recebendo transferências que passavam pelos Estados Unidos, inclusive através do Distrito Leste de Nova Iorque”, lê-se na acusação.

“…os co-conspiradores desviaram parte destes valores (de empréstimos) para efectuar pagamentos de subornos e comissões, em dólares americanos, utilizando o sistema financeiro dos Estados Unidos através de transacções transferidas através de contas bancárias nos Estados Unidos, incluindo pelo menos 5 milhões de dólares para o arguido MANUEL CHANG através do Distrito Leste de Nova Iorque”, explica-se na acusação.

Refere-se ainda, na acusação, que entre 20 de Outubro de 2013 e 4 de Dezembro de 2013, Jean Boustani fez com que a Privinvest efectuasse pagamentos de subornos, num valor aproximado de 5 milhões de dólares, a partir da conta bancária da Privinvest nos Emirados Árabes Unidos. Esta transacção foi feita através do Distrito Leste de Nova Iorque, em benefício do arguido MANUEL CHANG, para uma conta bancária domiciliada na Espanha. Nestes termos, o Governo dos EUA acusa Chang de ter cometido três tipos legais de crimes, nomeadamente:

1. Conspiração para cometer uma fraude eletrónica

Este é o primeiro tipo legal de crime de que Chang é acusado nos EUA. E a acusação vem nos seguintes termos: “O arguido MANUEL CHANG, juntamente com outros, conspirou consciente e intencionalmente para elaborar um esquema e artifício para defraudar um ou mais investidores e potenciais investidores na Proindicus, EMATUM, MAM e na Bolsa de Valores para obter dinheiro e propriedade deles por meio de um ou mais pretextos materialmente falsos e fraudulentos, representações e promessas e, com o objectivo de executar esse esquema e artifício, transmitir e fazer com que sejam transmitidos, por meio de comunicações electrónicas, no comércio interestadual e internacional, escritos, sinais, imagens e sons, violando o Título 18, Código dos Estados Unidos, Secção 1343.

2. Conspiração para cometer fraude em valores mobiliários

Este é o segundo crime de que Chang é acusado: “O arguido MANUEL CHANG, juntamente com outros, conspirou consciente e deliberadamente para usar e empregar um ou mais dispositivos e artifícios manipuladores e enganadores, contrários à Regra lOb-5 das Regras e Regulamentos da Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos, Título 17, Código de Regulamentos Federais, Secção 240. 10b-5, ao: (i) empregar um ou mais dispositivos, esquemas e artifícios para defraudar;(ii) fazer uma ou mais declarações falsas de factos materiais e omitindo factos materiais necessários para que as declarações feitas, à luz das circunstâncias em que foram feitas, não sejam enganadoras; e (iii) praticar um ou mais actos, práticas e cursos de negócios que operariam, e operaram, como fraude e engano sobre investidores e potenciais investidores na EMATUM e na Bolsa, em conexão com a compra e venda de investimentos na EMATUM e na Bolsa, directa e indiretamente, através da utilização de meios e instrumentos de comércio interestadual e dos correios, em violação do Título 15, Código dos Estados Unidos, Secções 78 j(b) e 78 ff.

3. Conspiração para cometer branqueamento de capitais

O terceiro crime de que Chang é acusado é este: “O arguido MANUEL CHANG, juntamente com outros, conspirou consciente e intencionalmente para transportar, transmitir e transferir instrumentos monetários e fundos para um ou mais locais fora dos Estados Unidos a partir de um ou mais locais dentro dos Estados Unidos, e para um ou mais locais dentro dos Estados Unidos a partir de um ou mais locais fora dos Estados Unidos, com a intenção de promover a realização de uma ou mais actividades ilegais especificadas, a saber:

(i) infracções contra uma nação estrangeira que envolvam o suborno de um funcionário público, ou a apropriação indevida, roubo ou desvio de fundos públicos por / ou em benefício de um funcionário público, em violação da legislação moçambicana, tal como definida no Título 18, Código dos Estados Unidos, Secção 1956(c)(7)(B) ;

(ii) fraude electrónica, em violação do Título 18, Código dos Estados Unidos, Secção 1343; e

(iii) fraude na venda de valores mobiliários, em violação do Título 15, Código dos Estados Unidos, Secções 78 j(b)e 78 ff (coletivamente, as “Actividades Ilícitas Especificadas”), em violação do Título 18, Código dos Estados Unidos, Secção 1956(a)(2)(A) e sabendo que os instrumentos monetários e os fundos envolvidos no transporte, transmissão e transferência representavam o produto de alguma forma de actividade ilícita, e sabendo que esse transporte, transmissão e transferência se destinavam, no todo ou em parte, a ocultar e dissimular a natureza, localização, origem, propriedade e controlo do produto de uma ou mais actividades ilícitas especificadas, a saber, as Actividades Ilícitas Especificadas, contrariamente o Título 18, Código dos Estados Unidos, Secção 1956(a)(2)(B).

Chang nega todas as acusações

Chang defendeu-se rejeitando todas as acusações dos três crimes, usando vários argumentos, incluindo que nunca esteve nos EUA ou que nunca manteve contacto com pessoas e entidades localizadas nos EUA para cometer os crimes de que é acusado.

No dia 21 de Fevereiro de 2024, o escritório de advogados contratado por Chang submeteu ao Tribunal o documento da defesa, de 69 páginas, que no essencial nega todas as acusações, usando vários argumentos, e pede ao tribunal para “rejeitar a acusação” e, “em alternativa, o tribunal deve retirar todas as alegações relacionadas com a Conspiração Eurobond”.

O documento de defesa de Chang é assinado por 4 advogados do escritório FORD O’BRIEN LANDY LLP, nomeadamente o próprio Adam C. Ford (líder e que dá nome ao escritório), Jamie H. Solano (uma antiga funcionária do Departamento de Justiça, por 8 anos, mas que deixou o cargo para se tornar advogada de Chang), Anjula S. Prasad e Arthur Kutoroff. A FORD O’BRIEN LANDY LLP é um escritório de luxo, dos mais caros dos EUA, e que se diz especializado em defender crimes de colarinho branco.

Acusações extraterritoriais

O essencial da defesa de Manuel Chang é que ele não cometeu nenhum crime de que é acusado e, por mais que tivesse cometido, foi tudo feito fora dos EUA. Pelo que não se encontra preenchido o princípio da territorialidade do direito penal, segundo o qual para que um Estado tenha a competência de jurisdição penal (poder de processar e julgar um caso), este deve ter sido praticado no seu território. “Aceitando as alegações do Governo na Acusação como verdadeiras para efeitos desta moção, não há simplesmente nenhuma conduta em que o Sr. Chang alegadamente se tenha envolvido que tivesse qualquer ligação com os Estados Unidos.

O facto de o alegado pagamento de suborno – pago por uma empresa libanesa com uma conta bancária nos Emirados Árabes Unidos para uma conta bancária espanhola em nome de uma empresa espanhola, propriedade de um empresário português, mas alegadamente controlada pelo Sr. Chang – ter tocado num banco correspondente dos Estados Unidos no meio da transferência eletrónica é insuficiente, por uma questão de direito, para conferir jurisdição aqui”, lê-se no documento da defesa de Chang.

Este argumento de territorialidade é o mesmo usado pela defesa de Jean Boustani em 2019, o primeiro dos 8 réus acusado pelos EUA a ser julgado em Nova Iorque. E parece que teve a aceitação do Júri. Boustani foi absolvido. O Júri não tem de dar explicação da sua decisão de absolver o réu, mas há entendimento, entre os profissionais que acompanham o caso por perto, de que os membros do júri entenderam que os crimes de que o Boustani era acusado não foram cometidos nos EUA.

Chang chama por Nyusi em Nova Iorque

Manuel Chang nega as acusações do Governo norte-americano que pesam contra si, e não parou por aí: apontou o responsável pelas dívidas ocultas. Essa pessoa chama-se Filipe Jacinto Nyusi, que era colega de Chang no Governo (de Armando Guebuza), ocupando a pasta de ministro da Defesa Nacional. Nyusi é o actual presidente da República de Moçambique, eleito em 2014 e reeleito em 2019.

O seu mandato termina em Janeiro de 2025, assim que um novo presidente a ser eleito este ano, tomar posse. Para sustentar a sua tese, Chang apresentou dois documentos ao Tribunal de Brooklyn, ambos preparados pelo Gabinete de Filipe Nyusi, na altura ministro da Defesa Nacional, e por si assinados.

O primeiro documento é um Memorando de Implementação do Sistema de Monitoria e Protecção (SIMP) da Zona Económica Especial (ZEE), datado de 21 de Dezembro de 2012 e assinado pelo próprio Filipe Nyusi (ministro da Defesa Nacional), por Alberto Mondlane (ministro do Interior) e por Gregório Leão (Director do Serviço de Informações e Segurança do Estado – SISE).

Sem ter assinado o Memorando, estiveram presentes na reunião Basílio Monteiro, na altura vice-Comandante Geral da Polícia, Victor Bernardo, presidente do Conselho de Administração da Monte Binga (uma empresa do Ministério da Defesa), Raufo Irá, administrador da GIPS (uma empresa do SISE), Teófilo Nhangumele e António Carlos do Rosário. Do Rosário é quadros do SISE e Nhangumele e foi apresentado como estando em representação da Presidência da República.

Os dois estão profundamente envolvidos no desenho do projecto que deu origem às dívidas ocultas. Ambos estão condenados a 12 anos de prisão pelo Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, que julgou o processo das dívidas ocultas3. São igualmente co-arguidos do Chang no processo criminal de Nova Iorque.

O Memorando foi celebrado no Gabinete do Ministro da Defesa Nacional e Filipe Nyusi é o primeiro assinante. Todos os presentes na reunião em que este Memorando foi elaborado estiveram em Tribunal que julgou o primeiro processo-crime das dívidas ocultas em Maputo, uns como réus (Gregório Leão, António Carlos do Rosário, Teófilo Nhangumele) e outros como declarantes (Alberto Mondlane, Raufo Irá, Victor Bernardo)). Nyusi é o único que não esteve no julgamento por decisão do juiz Efigénio Baptista, que julgou o caso. O principal argumento para o afastamento de Nyusi do julgamento de Maputo é que é Presidente da República em exercício.

O segundo documento apresentado por Chang ao tribunal norteamericano é uma conhecida carta de Filipe Nyusi dirigida a Manuel Chang a solicitar que este assinasse os Termos do Acordo de Financiamento do Projecto de Monitoria e Protecção da Zona Económica Exclusiva. A carta tem a Ref.n°005 /GAB/MDN/2013 e é datada de 14 de Janeiro de 2013.

Com os dois documentos, Chang procura demonstrar que Nyusi é a figura central tanto da concepção assim como do financiamento do projecto SIMP que deu origem às dívidas ocultas e que ele (Chang) foi um mero cumpridor de ordens emanadas de Nyusi, na altura ministro da Defesa Nacional.

Não é a primeira vez que o nome de Filipe Nyusi é colocado no centro do escândalo das dívidas ocultas. Nyusi foi amplamente apontado pelos réus do processo-crime das dívidas ocultas no Tribunal Judicial da Cidade de Maputo como uma figura central no escândalo, mas o Juiz do caso, Efigénio Baptista, nunca aceitou notifica-lo como declarante. Filipe Nyusi foi também citado no processo civil das dívidas ocultas no Tribunal Superior da Inglaterra e País do Gales, em Londres, por acusação da Privinvest. Neste caso, Nyusi defendeu-se alegando imunidade presidencial de que goza enquanto chefe de estado em exercício.

Caso seja notificado no processo-crime do Tribunal Distrital de Brooklyn, há quase a certeza de que Nyusi irá recorrer à imunidade presidencial para não estar presente em Tribunal. Porém, o mandando de Nyusi está perto do fim e o processo de Nova York pode se alastrar para além do seu término em janeiro de 2025.

A primeira grande derrota da defesa de Chang: tribunal autoriza buscas no telemóvel

 

No dia 25 de março houve audiência no tribunal de Brooklyn para julgar uma montion in Limine na qual a defesa de Chang, alegava que o telemóvel do ex-ministro das Finanças, com o qual foi detido em Dezembro de 2018 em Joanesburgo, não devia ser vasculhado pelo Governo norte-americano.

Quando Chang foi detido, o seu telemóvel foi confiscado pelas autoridades sul-africanas e depois que Chang doi extraditado aos EUA, o telemóvel foi entregue às autoridades norte-americanas. O DOJ requereu ao tribunal que emitisse mandado para autorizar buscas no telemóvel de Chang.

A defesa contestou alegando que o pedido do Governo chegou tarde (mais de 30 dias após o confisco do telemóvel) e que o telemóvel é pessoal e contém informações pessoais de Manuel Chang. A defesa argumentou, ainda, que quando Chang foi detido já não era ministro das Finanças e passavam-se vários anos (cerca de 5) desde que tinha cometido os crimes de que é acusado. Pelo que, a probabilidade de encontrar alguma informação relacionada com o caso em julgamento no telemóvel era mínima. Por isso defendia que o telemóvel devia ser devolvido a Chang, através dos seus advogados.

Por sua vez, a acusação defendia que apesar de o telemóvel ter sido adquirido por Chang após ter deixado o Governo, há probabilidade de que Chang tenha transferido informação dos telemóveis anteriores para o actual e nisso interessava ao Governo (norte-americano) verificar a existência de possível informação que pudesse ajudar a constituir provas contra Chang nos casos em que é acusado.

O Procurador Jonathan Siegel, que apresentou os argumentos do DOJ na sessão de audiência do dia 25, explicou especificamente que Chang mantinha comunicações com Jean Boustani mesmo após ter deixado o cargo e que ao fazer buscas no telemóvel, poder-se-ia encontrar mais evidências do envolvimento de Chang com os outros co-conspiradores.

O CIP adquiriu a transcrição da sessão na integra e tal como o fez no passado, publica para, na íntegra, consulta livre dos cidadãos (documento disponível somente na língua inglesa).

No dia 27 de Março, o Juiz Nicholas G. Garaufis decidiu que o Governo norte-americano podia fazer buscas no telemóvel de Changa, negando, desta forma, dar provimento ao pedido da Defesa. Assim, todas as comunicações mantidas no telemóvel de Manuel Chang até ao dia 29 de Dezembro de 2018, quando foi detido em Joanesburgo, estão na posse do Governo dos EUA. (Centro de Integridade Pública)

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