Nelson Antunes, M.A especializado em Migração Internacional e Direitos Humanos; Docente na Universidade Joaquim Chissano.
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O relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), sobre as tendências globais do deslocamento forçado de pessoas, publicado recentemente aponta para existência de aproximadamente 80 milhões de deslocados forçados no mundo, o que representa cerca de 1% da população mundial no ano em curso. Do número total de deslocados até agora registrado pelo ACNUR, mais de dois terços (68%) resultam dos conflitos na Síria, Venezuela, Afeganistão, Sudão do Sul e Myanmar.
Os cinco maiores produtores actuais apontados pelo relatório indicam uma redução e mudança dos centros de produção de deslocados forçados, movendo-se de um âmbito regional para países singulares se comparado com os padrões observados durante a década de 1990. Nesse período os deslocados eram reflexo dos conflitos que tinham uma dimensão regional em África, Médio Oriente, América Latina e Caribe, Ásia e o Leste Europeu; muitos desses conflitos resultavam das consequências da Guerra Fria, das guerras civis e dos conflitos étnicos que marcaram os anos 90.
Actualmente a concentração de 68% da produção de deslocados forçados em apenas cinco países sugere por um lado uma redução dos conflitos regionais e por outro lado mostra que a mitigação dos conflitos nesses países, que são responsáveis pela insegurança humana e violação massiva de direitos humanos de dois terços dos 80 milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade, pode vir a constituir uma medida significativa para a redução do actual número global de deslocados forçados, uma posição que é também defendida pelo ACNUR.
A existência de 80 milhões de deslocados forçados significa que há um número cada vez mais crescente de indivíduos com necessidade de assistência humanitária. No entanto, a pandemia do COVID19 apresenta-se acltuamente como um entrave, que associado aos desafios já existentes, poderá limitar ou constranger em grande medida a prestação de ajuda humanitária em favor dos deslocados durante o ano em curso e nos próximos dois anos, altura que se espera obter uma vacina contra o vírus.
Tratando-se de deslocados forçados, a ajuda humanitária é concedida como parte integrante do Regime Internacional de Protecção de Refugiados que congrega a Convenção de 1951 Relativa ao Estatuto de Refugiados e o Protocolo Adicional de 1967, assim como os bons ofícios do ACNUR que resultaram na criação dos Princípios Orientadores sobre os Deslocados Internos em 1998, tendo posteriormente influenciado a adopção da Convenção Africana sobre a Protecção e Assistência às Pessoas Deslocadas Internamente em África no ano de 2009.
A funcionalidade do regime acima mencionado depende essencialmente da boa vontade dos Estados quer em termos de doações monetárias para os programas de ajuda humanitária encabeçados pelo ACNUR assim como no acolhimento dos mais vulneráveis. Entretanto, o COVID19 tende a causar alterações no padrão e no fluxo de assistência que os Estados há já bom tempo têm vindo a prestar aos deslocados forçados. A título de exemplo, os maiores doadores do ACNUR – países da OECED – estão actualmente concentrados no combate ao COVID19 que tem registrado aumentos no número de casos infectados nesses países; diante disso, os esforços estão virados ao financiamento de pesquisas com vista a conter a pandemia a nível interno e garantir a sobrevivência de suas populações.
Já os países em desenvolvimento, considerados os maiores acolhedores de deslocados forçados, estão a restringir o número de pessoas que têm sido normalmente acolhidas em seus territórios. Esta constitui uma situação desfavorável para os deslocados forçados porque a prestação de assistência humanitária dentro do regime depende da conjugação entre a disponibilização do financiamento dos doadores e a colaboração ou abertura dos acolhedores (o financiamento canalizado aos países em desenvolvimento no âmbito do acolhimento de deslocados forçados funciona como um incentivo de cooperação para esses países).
Para além do que foi mencionado anteriormente, tem havido há algum tempo uma espécie de competição por recursos financeiros entre as principais agências humanitárias com o envolvimento de outras Organizações Internacionais que também dependem das doações. Nesse contexto, a Organização Mundial da Saúde está actualmente a concentrar a maior parte das doações dos principais doadores a nível da comunidade internacional com vista a garantir a criação de uma vacina que possa responder à ameaça do COVID19. Assim, quer o ACNUR como a Organização Internacional para Migrações são desafiados a encontrar formas alternativas para garantir assistência aos cerca de 80 milhões de deslocados forçados existentes no mundo.
A actual situação reforça a tese de Relações Internacionais sobre o funcionamento dos regimes internacionais segundo a qual os Estados mostram-se disponíveis a cooperar apenas quando a previsão dos resultados da cooperação apontam para a maximização dos interesses individuais de cada entidade estatal. Nesses termos, nenhum Estado actualmente prioriza a questão dos deslocados forçados em virtude da concentração de esforços no combate ao COVID19.
Portanto, as previsões sugerem que durante o ano em curso e nos próximos dois anos os deslocados forçados serão relegados ao segundo plano em termos de prioridades na agenda internacional. A redução ou o provável corte de financiamento causará limitações na provisão material para as pessoas oficialmente acolhidas nos países em desenvolvimento e como consequência disso haverá uma deterioração das condições de segurança humana e direitos humanos dos deslocados forçados a nível global.