Desde a primeira reportagem pública do COVID-19 em Dezembro de 2019, em Wuhan – China, o virus espalhou-se rapidamente pelo mundo produzindo milhares de vítimas mortais que resultam de casos registrados na Ásia, África, América e Europa. Com isso, o COVID-19 tornou-se hoje um problema de todos que afecta todas camadas sociais sem discriminação de raça, etnia, proveniência e nacionalidade.
O fenómeno da migração internacional, de forma geral, foi o principal veículo de internacionalização de um problema que começou na China e atingiu outros países em menos de dois meses. Evidências indicam que os primeiros casos fora da China foram reportados em Janeiro do ano em curso no Japão, Tailândia e Coreia do Sul, seguido dos Estados Unidos da América, França e assim por diante. A rápida propagação internacional do COVID19 mostrou que a migração internacional, para além de estar incrustada nos processos de desenvolvimento económico dos países de origem e de destino, também funciona como mecanismo de difusão de ameaças nas relações internacionais.
Na verdade, constitui uma proposição axiomática nos de Estudos de Migração Internacional assim como nos Estudos de Segurança que é através dos processos dos movimentos migratórios internacionais que as ameaças transnacionais como o terrorismo, o tráfico humano, o narcotráfico e as doenças infecciosas se internacionalizam passando de um fenómeno com uma manifestação localizada para um problema de dimensão global.
Diante da internacionalização da ameaça do COVID-19 foram tomadas várias medidas de contenção do virus a nível do sistema internacional, dentre as quais destacam-se o fecho de fronteiras e o reforço das medidas restritivas contra a emigração de cidadãos nacionais e a imigração de individiduos indesejados em vários países. A título de exemplo, a livre circulação de pessoas e bens foi condicionada na União Europeia colocando em causa a integridade do espírito do Acordo Schengen; o mesmo se deu no continente africano, com destaque para a região da SADC onde África do Sul optou pelo bloqueio total e de seguida outros países tomaram medidas semelhantes com algumas variações.
Pela primeira vez houve uma uniformização global da política de migração internacional que partiu dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento, o que constitui um facto histórico porque tradicionalmente os dois grupos de países têm adoptado políticas de migração que não convergem (sem necessariamente existir algum tipo de divergência entre si). Por um lado, os países desenvolvidos são conhecidos por criarem políticas selectivas de migração internacional cujo objectivo consiste na atracção de cerébros que possam contribuir nos processos de desenvolvimento económico; por outro lado, os países em desenvolvimento são conhecidos por promoverem políticas de exportação de mão-de-obra como forma de reduzir o excesso de força laboral desempregada. Portanto, o COVID-19 impulsinou ambos grupos de países a adotarem em simultâneo medidas restritivas à migração internacional.
Por seu turno, o aumento das medidas restritivas à imigração internacional produz um efeito positivo sobre os fluxos das migrações clandestinas. Por outras palavras, a migração clandestina é responsiva às políticas de controlo dos movimentos migratórios internacionais, isto é, quanto maior forem as medidas de controlo maior serão os fluxos da migração clandestina. Tal ocorre por causa dos serviços oferecidos pela indútria migratória ilegal que é responsável pela criação de mecanismos de facilitação de entradas clandestinas para imigrantes económicos em muitos países receptores.
A indústria migratória ilegal é constituída por facilitadores que vão desde forjadores de documentos (passaportes, vistos, etc.), contrabandistas de pessoas que organizam a logística de trasporte, provedores de alojamento no local de destino à agentes policiais corruptos que permitem a entrada nos postos fronteiriços mediante pagamentos de subornos e fazem vista grossa aos imigrantes ilegais encontrados em território do país receptor. É por causa dos serviços dessa indústria que torna-se cada vez mais difícil conter os fluxos da migração clandestina pois ela opera através de redes sofisticadas do crime organizado transnacional que possuí esquemas operacionais consolidados.
É muito provável que os fluxos da migração clandestina tenham aumentado a nível global neste período do COVID-19. Por sua vez, o caso particular de Moçambique mostra que as entradas clandestinas de imigrantes não permaneceram estáticas; só para mencionar alguns exemplos: em Julho foram detidos 39 malauianos por imigração ilegal na província de Inhambane; no mesmo mês foram detidos 15 etíopes pelo mesmo motivo na província de Tete; já em Agosto o Serviço Nacional de Migração repatriou cerca de 138 imigrantes clandestinos. Os casos podem ser ainda maiores se for tomado em conta o facto de que grande parte dos imigrantes clandestinos estão envolvidos em migrações trasnacionais (movimentos contínuos de entrada e saída) nas províncias fronteiriças de Moçambique onde proliferam actividades de mineração artesanal. Para além desses, existem os casos de moçambicanos, na província de Gaza, que regressam ao país de forma clandestina provenientes da África do Sul.
A imigração clandestina revela-se particularmente preocupante em tempos de COVID-19 por duas razões. A primeira resulta do facto dela permitir a entrada de qualquer invíduo sem algum tipo de obervação médica ou fiscalização de saúde devido a natureza desse tipo de movimento migratório e a segunda decorre do facto dos imigrantes clandestinos não poderem ter acesso a assistência médica, uma vez em território nacional, por causa do estado de clandestinidade. As duas questões minam os esforços de contenção do COVID-19 porque torna-se praticamente impossível rastrear as contaminações resultantes da imigração clandestina.
O controlo fronteiriço em Moçambique é débil, para além de existirem regiões em que praticamente não há postos de controlo. Essa realidade é particularmente vantajosa para os imigrantes clandestinos que são atraídos pelas actividades de mineração artesanal nas províncias de Manica, Tete, Nampula e Cabo Delgado onde existem minerais preciosos em abundância. Diante disso, a possibilidade de entrada clandestina de indivíduos contaminados pelo vírus constitui uma ameaça que pode estar a contribuir no aumento dos casos de contaminação no país e de certa forma pode inviabilizar os esforços que têm estado a ser empreendidos com vista a combater o COVID-19.
Portanto, há uma necessidade de reforçar as medidas de controlo fronteiriço nas regiões onde existem postos de controlo já estabelecidos e criar novos postos nos pontos onde esses não existem pois a migração clandestina tem se mostrado um problema que permite a entrada de uma variedade de ameaças transnacionais em Moçambique que vão desde o tráfico humano, o narcotráfico, o contrabando, as doenças infecciosas ao terrorismo. Por sua vez, o controlo fronteiriço deve ser reforçado pelo estabelecimento de alianças de cooperação funcionais (os acordos regionais existentes na matéria revelam-se ineficientes) com países que possuem uma vasta experiência no combate às ameaças transnacionais.
Nelson Antunes, M.A especializado em Migração Internacional e Direitos Humanos.
Docente na Universidade Joaquim Chissano.